Caligrafia para canhotos
Suponha a seguinte situação: Imagine que caiu de paraquedas numa cultura em que a escrita se desenvolveu com a leitura da direita para a esquerda e com todas as letras invertidas. Tente agora escrever seu nome da direita para a esquerda, de forma semelhante como a imagem abaixo.
Imaginou? Tentou? Difícil, né? Pois bem, este cenário proposto por Charles Trafford seria o inferno para destros mas o paraíso para canhotos. Este exemplo serve para observarmos como a escrita desenvolveu-se em torno da tradição destra e que a inserção do canhoto na escrita, e consequentemente na caligrafia histórica ou expressiva, necessita uma abordagem cuidadosa e específica. A boa notícia é que ela é possível – sim – e temos ótimos calígrafos por aí para provar isso.
Fizemos o teste proposto acima. Mesmo para um canhoto podemos dizer que não é uma tarefa fácil. De qualquer forma, em nenhum momento – entre tantas tentativas – a preocupação girou em torno do cuidado de não borrar o trabalho ou em relação ao apoio da mão. Nesse sentido, foi uma experiência sensacional!
Curiosidades sobre canhotos
Várias são as espécies que preferem o uso de membros esquerdos em função dos direitos. Em um episódio do canal de Nerdologia, Átila Iamarino nos conta que algumas aves, como Papagaios e Araras em sua maioria preferem usar a pata esquerda para se alimentarem, por exemplo.
Por outro lado, entre nossos ancestrais mais próximos, chimpanzés e gorilas, a predominância é de destros. Esse fato foi herdado por nós e hoje estima-se que cerca de 10% da população seja de canhotos. Outro fato interessante é que normalmente a incidência é maior em homens (13%) do que em mulheres (9%).
Como esta variação tem relação com a mudança do lado dominante do cérebro, muito se especulou sobre maior inteligência ou criatividade desses grupos, nada ainda cientificamente comprovado.
Ainda assim, vale lembrar que algumas expressões linguísticas nascem dessa relação entre destros e canhotos, normalmente atribuindo qualidades aos destros e deficiências aos canhotos. É comum escutarmos que alguém fez algo “direito” quando fez a coisa de forma correta. Ou ainda que se alguém domina uma determinada técnica, diz-se que ela tem “destreza” no assunto (destreza, destro… sacou?). Em países com o Espanha e Itália, os canhotos são chamados de sinistros.
Os tipos de pega para canhotos
Canhotos não tem a vida assim tão fácil quando o assunto é escrita. Em geral, na escola, são orientados por destros (lembra? Existe 90% de seu professor ser destro!) que podem não ter a devida formação sobre postura e pega na escrita. Para aqueles que querem entrar no mundo da caligrafia histórica ou expressiva, este dito incômodo passa a ser um assunto que precisa ser encarado e enfrentado.
A sequência para execução de um caractere pode se alterar bastante nesse caso. Tudo vai depender do tipo de pega na ferramenta. Iremos apresentar aqui algumas empunhaduras indicadas por Gaynor Goffe, reconhecida calígrafa que é canhota. Goffe indica três possíveis modelos para canhotos. Vamos a eles.
1. Escrita horizontal
Para esta postura você deve segurar a pena apontada para longe do corpo e girar sua mão ao máximo à esquerda, numa postura que inicialmente pode ser (bastante) incômoda. Nessa pega, a posição em relação à linha e à palavra aproxima-se à de um destro.
A mão posiciona-se abaixo da linha de base. Pode-se utilizar o mesmo ductus caligráfico para destros como orientação. Para facilitar o processo de adaptação, o papel pode ser levemente inclinado à direita e deslocado à esquerda, o que diminui um pouco a inclinação do punho.
Goffe considera esta a forma mais adequada para treino de canhotos, apesar da postura inicialmente incômoda. A utilização de penas adaptadas para canhotos, com corte ligeiramente oblíquo, ou ainda de um cabo inclinado, pode ajudar bastante para conseguir a devida inclinação.
Para a escrita de letras cursivas, tal como a Copperplate que utiliza pena de ponta fina, o canhoto leva vantagem. Para esse caso, são os destros que precisam adquirir cabos oblíquos para conseguir realizar o movimento necessário.
2. Escrita vertical
Neste tipo de escrita, o canhoto deve girar o papel 90º em sentido horário. A pega é semelhante à anterior, como o papel está em nova posição, o punho curva-se muito pouco. O cotovelo é que se projeta para mais longe do corpo, deixando o ante-braço quase perpendicular à linha de base, encontrando uma postura mais livre e suave de escrita.
Na escrita vertical, o ductus tradicionalmente desenvolvido para destros deve ser utilizado para referência.
3. Escrita em gancho
A pegada em gancho é a que aparenta ser a mais fácil e cômoda para iniciantes, sendo facilmente adotada em casos de falta de orientação. Aos poucos este tipo de postura impõe ao calígrafo o maior número de limitações e, por isso, deve ser evitada.
Nessa postura, a pena é direcionada ao corpo, com o punho bastante curvado à direita, completando o desenho do gancho. A mão posiciona-se acima da linha de base, obstruindo a visualização da palavra recém escrita.
Outro problema dessa postura é o arrasto de tinta. Por posicionar o apoio da mão justamente na altura da linha de base, esse modelo faz com que a base de apoio da mão seja friccionada contra a tinta ainda antes da sua secagem, o que pode comprometer todo o seu trabalho.
Como canhoto que adotou essa postura (mas treinando cada vez mais para sair deste modelo), cheguei a adaptar o sistema de apoio, erguendo o punho e apoiando a mão em três pontos: a ponta dos dedos anelar e mínimo e também no cotovelo. Além de cansativa, essa operação não gerava um apoio adequado, dificultando a realização de traços firmes.
Por fim, outra desvantagem é que o ductus para este tipo de pega deve ser invertido. representações desse tipo são raras de se encontrar. Caso não encontre o ductus indicado para canhotos em postura de gancho, a regra para desenvolvimento dos caracteres nem é tão complexa. Basta inverter o sentido de execução dos traços para que a pena seja sempre puxada e nunca forçada contra o papel.
O problema maior neste ductus adaptado está na inversão dos pontos de entrada e saída do traço. Locais de acúmulo de tinta ou de remate acabam também invertidos. O calígrafo que utilize essa postura deverá administrar muito bem a quantidade de tinta pois qualquer acúmulo no papel será mais facilmente percebido em seu trabalho.
Resumindo
Vimos que um canhoto pode perfeitamente ser um grande calígrafo. É importante que a postura da pega seja trabalhada desde o início para que gere melhores resultados.
Gaynor Goffe afirma que a postura horizontal é a mais indicada, ao mesmo tempo em que afirma que ela não é a única e que, caso outra postura seja tomada, suas limitações ou problemas sejam considerados e remediadas desde o início.
É isso. Destros e Canhotos, agora é treinar bastante! Boa sorte e bom estudo!
Agradecimentos
Agradeçemos ao Gui Menga e ao Humberto Alves. Este post não teria saído sem a ajuda de vocês.