Estética Armorial
“Debaixo da canícula do sol, os rebanhos iam sendo ferrados com a marca do proprietário do sítio e da ribeira onde estava situado, mostrando a todos os que testemunhavam o ocorrido que o animal abalizado tinha uma pertença. Mais que isso: através dos laços assinalados com fogo passava a identificar a família do criador, cujo simulacro parecia, muitas vezes, um emaranhado de grafismos e arabescos dispostos tal e qual seus ancestrais. A ansiedade primeira para o momento da ferra ia cedendo espaço, ao findar da tarde, ao sentimento de alegria de ver a obrigação cumprida. E, também, ao cansaço de um dia de muito esforço e trabalho, recompensado pelo deitar na rede, armada no alpendre, gozando dos ventos da boquinha da noite.”
O trecho acima descreve o rotineiro ritual de marcação de gados no Sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte. Essa prática até pouco tempo bastante difundida nos sertões nordestinos resultou numa ampla coleção de grafismos, tipos distorcidos, retorcidos, variantes únicas que não podiam se repetir, cuja procedência geográfica pode ser identificada pelos padrões nas formas desses ideogramas. E é sobre esses símbolos rústicos e minuciosamente trabalhados que se trata esse post.
Ariano Suassuna, romancista e criador do movimento, conceitua a Estética Armorial como “a criação alheia de uma heráldica nordestina, mais especificamente sertaneja”, em que os ferros de marcar gado (dentre outras manifestações culturais como pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema) refletissem “todo um espírito da tradição que, vindo da Península Ibérica, aqui se corporificou mágica e ludicamente”. A Arte Armorial se baseia na ideia de que a cultura brasileira genuína é resultado dos intensivos processos imigratórios que ocorreram no país desde a chegada dos portugueses, e da cultura indígena anteriormente já presente. Com isso, o movimento assume uma arte de formação técnica europeia (erudita) e com base na tradição nacional. O movimento iniciou-se oficialmente no Recife na década de 70. Em Fortaleza, um dos maiores representantes do movimento foi o Colégio Nordestino de Heráldica Sertaneja que tinha à frente o poeta Virgílio Maia e o grupo do Jornal o Pão.
O costume de marcar o gado com o símbolo do seu dono a ferro quente no couro vem de muito tempo, sendo os primeiros registros históricos encontrados no Egito Antigo em pinturas tebanas com mais de 4 mil anos. Do Egito a prática chegou na Grécia onde fora registrada nos poemas de Anacreonte:
“Os verdadeiros amantes imprimem um sinal de fogo nos corações, sinal pelo qual se reconhece o verdadeiro amor, como os Partas se reconheciam por suas tiáras e os cavalos pela marca queimanda em sua côxa.” ()
Da Grécia, passando por Roma e se espalhando por todo Mediterrâneo até chegar na Península Ibérica e de lá para o Novo Mundo até os tempos de hoje. É válido mencionar outras referências ideográficas antes de chegarmos no sertão nordestino propriamente dito a na aplicação em letras e números formando novos caracteres.
As Runas
É nítida a semelhança estética das marcas de ferra gado e essas antigas letras germânicas que foram levadas à Inglaterra pelos invasores alglo-saxões nos séculos V e VI. Os escritores espanhóis Luís e Jesús Lerate informam que “para os germanos, porém, não foram apenas letras em nosso sentido, mas também signos vivos e atuantes, dotados de particulares poderes…Cada runa tem seu nome que, sem dúvida por motivos mnemônicos começa com o mesmo fonema que ela representa.”
Os Kadiwéus
No Brasil, o uso das marcas de gado passou para algumas tribos indígenas, especialmente a dos Guaicurus, os famosos índios cavaleiros. É o antropólogo Italiano Guido Boggiani que estudou a apropriação dessa prática pelos índios kadiwéus, um subgrupo dos guaicurus atualmente habitantes nas planícies alagadas entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai. Os Kadiwéu são remanescentes da grande nação Guaicuru, que era nômade até se apropriar, em 1672, da primeira tropa de cavalos trazidos por colonizadores espanhóis. A partir daí, iniciaram a prática da criação de animais. Abaixo, algumas marcas de propriedade de gado dos Kadiwéu.
Os kadiwéus também foram objetos de estudo do etnólogo Darcy Ribeiro devido à complexidade e exclusividade de seus grafismos, usados em tapeçaria, pintura corporal, marcação de gado, escultura e outras manifestações gráficas. As marcas dos kadiwéus são bem mais trabalhadas que as presentes nos sertões nordestinos e muitas possuem significados transcendentais, sendo geradas em rituais xamânicos através do uso de substâncias alucinógenas.
Curioso que o termo branding usado para designar ações e estratégias que visam à construção e manutenção da identidade de uma marca ao longo do tempo e para além da morte de seus fundadores, deriva de brand que literalmente significa o ato de queimar, o termo foi primeiramente usado para distinguir os gados marcados de outros proprietários. As marcas de gado de determindas fazendas norte-americanas começaram a ser mais valiosas pela qualidade do gado do que outras, as marcações à ferro quente distinguiam qual a procedência do gado, e logo qual o seu valor no mercado. A valorização da marca então ganhou notoriedade sendo aos poucos solidificada até os dias de hoje tendo seu conceito agregado à logo, slogans e design de marcas.
Inspirado nos ferros marcadores de gado, Suassuna desenvolveu um trabalho tipográfico ligado à sua heráldica sertaneja: o Alfabeto Armorial.
Seu interesse pelas marcas de ferrar gado surgiram desde menino e foram solidificadas quando estava na faculdade, era um interesse mais voltado para a herança ancestral de sua família e pela arte presente naqueles elementos. O interesse no assunto fora tamanho, que o autor escrevera o livro Ferros do Cariri: uma heráldica sertaneja, inteiramente dedicado aos ferros de marcar gado. Suassuna passou a assinar outras obras suas não mais com seu nome em sua caligrafia, mas com o ferro de sua família, ferro dos Suassunas, herdado de seu pai. Mostrado na Figura 5. ()
Essa é uma característica peculiar dos ferros de marcar: logo que uma freguesia era herdada seu novo proprietário, geralmente o filho do antigo dono, deveria modificar a marca do antecessor acrescentando, retirando ou substituindo elementos à marca. Gustavo Barroso fora o primeiro a chamar de heráldica este encadeamento de marcas ligadas umas à outras pelos elementos ou diferenças. Tais diferenças são apresentadas por Virgílio Maia em sua obra Album de Iniciação à Heráldica das Marcas de Ferrar Gado, o autor elenca 21 diferenças. Suassuna em seu trabalho anterior ao de Maia conseguiu mapear e identificar esses elementos (diferenças) e elaborar seu Alfabeto Armorial replicando e combinando esses elementos. Talvez esse seja o ponto chave das marcas de ferrar gado ou da estética armorial nelas aplicadas, seja brasileira seja estrangeira, a infinidade de possibilidades para criação de ideogramas únicos e repletos de significado, da mesma maneira que os caracteres asiáticos.
Maia diz que a marca monográfica – aquela em que se entrelaçam as primeiras letras de um nome, é, quase sempre, coisa de fazendeiro novato. Nas palavras do autor “gente que ganhou um dinheirinho na cidade grande e resolveu inaugurar um criatório”. As marcas realmente boas, enraizadas, são aquelas cujo significado se perdeu com o tempo, tendo seus desenhos relação com Astrologia, Zodíaco e Alquimia como menciona Suassuna, se constituindo às vezes em árdua estenografia (bem semelhante aos kadiwéus).
Os ferretes também foram empregados para marcar seres humanos ao longo da história. Deixando de lado a parte voluntária da história (aqueles que quiseram fazer tatuagens permanentes por cicatrização e se utilizaram de marcas de ferro quente), nos tempos antigos era muito comum marcar escravos com os ferros da fazenda ou da família. Na guerra entre Chile e Peru, escravos chineses que lutaram na guerra eram marcados com ferro quente para facilitar a distinção. Mas esse é um fato que não se pretende desenvolver nesse post, restringindo-se apenas às marcas feitas por Lampião e seu bando no tempo do Cangaço nos rosto de mulheres para mostrar propriedade ou como punição por comportamento indevido – visto que tal fato ocorreu também nos sertões nordestinos.
Nas fotos o ferro contém o monograma JB, pertencentes ao cangaceiro José Baiano. Diz que a revolta de Zé Baiano surgiu quando um oficial de volante, por nome de Vicente Marques, surrou a sua mãe, deixando uma enorme cicatriz no seu rosto. A partir daí, o negro mandou fazer um ferro de ferrar com as iniciais “JB”, e a sua primeira vítima foi a dona de casa Maria Marques , sendo esta irmã do soldado Vicente Marques.
A jovem Balbina da Silva só foi ferrada porque mandou uma carta desaforada para Lampião, dizendo o seguinte: “O cabelo é meu e eu uso do jeito que eu quero”. Zé Baiano odiava mulher com o cabelo curto, e a chamava de “mulher homem ou Diabo”.
Por fim, é importante ressaltar a carga histórica contida nessas marcas. A história de famílias inteiras da região Nordeste – até mesmo escravos que quando ganhavam uma peça de gado pediam autorização do dono para usar o mesmo molde sendo que de cabeça para baixo para marcar seu gado – pode ser traçada seguindo as modificações gráficas nas marcas do gado. Não só isso, mas também muito dos costumes atuais do povo nordestino sendo originados do mesmo costume de marcar o gado e tão diferente dos demais que também se apropriaram da técnica pelo mundo. Muito tem a ver com os primórdios da tipografia, onde os tipos cunhados eram o que exaltava o tipógrafo, seus anseios, suas inspirações, a quantidade de trabalho empregado naquele alfabeto de madeira ou ferro e o que o distinguia dos demais artistas da letra. A priori com um olhar voltado à clareza da leitura mas que com o passar do tempo, a própria forma da letra sendo tão expressiva quanto o texto que ela concretiza visualmente.
Referências
Virgílio Maia – Albums de Iniciação à Heráldica das Marcas de Ferrar Gado
Maria José Medeiros Araújo e Vania Maria de Medeiros – COURO MARCADO A FERRO E FOGO: COTIDIANO E VIVÊNCIA DA MARCA DE FERRAR GADO NO SERIDÓ POTIGUAR
Carlos Newton Junior – O Pai, o Exílio e o Reino: A poesia armorial de Ariano Suassuna. Trechos Disponíveis em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_Armorial
http://armorialbrasileiro.wordpress.com/2013/02/04/movimento-armorial/
http://angelomazzuchelli.blogspot.com.br/2009/06/indios-kadiweu.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com.br/2013/09/virgulino-ferreira-da-silva-o-famoso.html
http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2010/07/marcas-e-cicatrizes-do-cangaco.html
http://marcating.wordpress.com/teoria/a-origem-da-marca/
http://en.wikipedia.org/wiki/Livestock_branding
http://blogdodrlima.blogspot.com.br/2011/10/o-diabo-em-forma-de-cangaceiro.html
Imagens:
http://celsoarakaki.fotoblog.uol.com.br/images/photo20120118121343.jpg
http://muhpan.wordpress.com/page/36/
http://www.flickr.com/photos/yuribittar/5055116834/
http://www.flickr.com/photos/franciscovalle/2829973408/sizes/o/
http://runassagradas.blogspot.com.br/2010/11/1-historia-das-runas.html
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Texto muito interessante! Gostaria, se possível, de saber onde posso baixar a fonte armorial. Estou fazendo um trabalho sobre Ariano e preciso escrever alguns títulos com essa fonte. Seria uma grande ajuda! Obrigada
Oi Luisa, obrigado pelo comentario e desculpa pela demora. A fonte do Ariano não está disponível para download, mas existem fontes que sao parecidas no estilo.
A Sertões do pessoal da Crimes Tipograficos (paga):
http://www.crimestipograficos.com/?go=fonts
Sugiro aqui a Uralita (free):
https://www.behance.net/gallery/uralita-font/3896591
e a South Rose (free):
https://www.behance.net/gallery/south-rose-free-typeface/10522583
Espero que atenda.
Traços das nossas heranças passadas, reconhecidas e detalhadas pelo Ariano Suassuna!
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Olá, gostaria de obter mais informações a respeito da foto dos crânios pintados (local, autor das fotos, matéria de origem).
Olá Pedro, desculpa a demora em repsonder. As iamgens foram retiradas desse perfil aqui https://www.flickr.com/photos/yuribittar/sets/72157625109285498/
Como ilustração para os motivos dos Kadiweus.